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ONDE O SEU KUNG FU PODE TE LEVAR?

dezembro 2, 2011

Uma pessoa amiga, que praticou um estilo de Kung fu durante algum tempo, me fez essa pergunta. Claro, por razões próprias, ela mostrava-se frustrada com o resultado que obtivera diante do seu tempo dedicado a arte.

Mas, porque dedicar-me a uma arte como o Kung fu? Onde ela pode me levar?

Se você busca no Kung fu a essência que o envolve verdadeiramente, você encontrará nele muito mais do que movimentos de ataque e defesa, e sim, princípios os quais poderão me auxiliar a responder essa questão no final deste texto.

No seu aprendizado técnico, e o seu desenvolvimento nos diversos tópicos em que um estilo ou sistema envolvem, é necessário da nossa parte determinação, dedicação, e muito trabalho (工力), para alcançarmos resultados significativos.

Em nossa caminhada no desenvolvimento, temos que estar receptivos, relaxados, e imbuídos de um estado de pureza e simplicidade (單純), para captar e assimilar os subsídios que esse processo propícia.

É quando, acontece o reconhecimento na transmissão, e os vínculos (心法) se estabelecem naturalmente, e com ele a confiança, o respeito mutuo e ás posições hierarquias, origens e objetivos.

Com isso, o cuidar (關懷) da transmissão, tanto no que se refere ao seu processo, quanto ao já recebido, se faz presente, e no todo, local, ambiente, membros ativos, e lideranças, manifestam  e nutrem esse zelo.

Então, diante de todo esse processo, a percepção (智擴) caminhou lado a lado com o seu crescimento, e assim, ela contribuirá para que você perceba que todos esses princípios, podem e devem ser aplicados no seus dia a dia, e  não ser confinados as quatro paredes de uma escola.

Assim, respondo a questão da minha amiga com uma outra:

Onde você pode levar o seu Kung fu?

“DISCORDAR JUSTIFICA A BARBARIE?”

novembro 1, 2011

Quando o Shi kung Hu Chao Tien chegou ao Brasil, primeiramente ele residiu por um tempo no Rio de Janeiro, mas não se adaptou. Costumava dizer que o mar trazia a nostalgia da distância da terra. Lembro do trecho de um poema que ele recitava:

而現在

愁是一灣淺淺的海

我在這頭

大陸在那頭

A tradução é mais ou menos assim:

“E agora,

A  nostalgia é um raso estreito no oceano

Eu estou do lado de cá

O continente está do lado de lá…”

Isso acabou levando-o a residir em São Paulo, onde pouco tempo depois, antes de abrir o seu restaurante, foi proprietário de uma pastelaria, algo muito comum aos chineses imigrantes da época.

O fato que eu quero contar aconteceu neste estabelecimento, e foi uma das vezes que pude presenciar o meu pai absolutamente indignado com uma situação e com os envolvidos nela.

Na época, surgiu um homem alegando-se profeta e o novo Jesus Cristo, o filho de Deus. Ele espalhava o seu nome (o qual não me lembro…) pela cidade através de pixações em paredes de estabelecimentos, viadutos, muros de casas, enfim, onde você andava estava lá: “O profeta “fulano” está de volta!”.

Um dia, não sei afirmar porque, o tal profeta apareceu na região, e sabe se lá porque, instaurou-se um alvoroço, e o homem foi espancado quase até a morte por um numero enorme de pessoas, não sendo ele morto graças a intervenção de policiais. Muitos motoristas de ônibus que costumavam comer seus pasteis, ou  tomar os seus cafézinhos na pastelaria, participaram do espancamento.

No final, parte deles retornaram ao estabelecimento do meu pai, e foram atendidos diferente do que de costume, com o velho de cara fechada e em silêncio, apenas servindo o que pediram. Num dado momento, alguém começa a narrar a sua parte no acontecido enquanto pede um pastel, e o dialogo começou:

– Melhor comer bem. Podem aparecer outros homens para você espancar, e você tem que estar alimentado… Disse-lhe o Shi kung.

– Você viu que louco safado, Henricão?.. (Era como o meu pai era conhecido pelos motoristas) Cobrimos ele de porrada!

– Não. Eu vi um monte de homens enlouquecidos, espancando um outro homem…

– Mas ele mereceu, estava de palhaçada! (Disse outro)

– É que ele veio de longe, com essas coisa de “Buda”… Ele não entende! (Justificando a atitude do meu pai)

– Nunca vou entender… E não se trata religiões diferentes, e sim de diferenças!

– Para nós que somos católicos, um cara aparece falando que é filho de Deus? Pensa…

– Pelo pouco que eu sei da sua religião, isso já aconteceu antes, e vocês fizeram a mesma coisa.

– Mas, é diferente!..

– Foi o que pensaram na época.

– Você está me dizendo que concorda com o que o cara estava dizendo que era?

– Não, e isso importa?

-Claro, pois então, você não concorda também!

-Discordar, justifica o sangue?

-Não entendi…

– Eu sei.

Esse caso me veio muito forte á cabeça nos últimos dias… Muitas pessoas tiveram que abandonar os seus países, parentes e entes queridos por temerem pelas próprias vidas ao discordarem. Claro que eu sei que ele não acreditava que o tal profeta falava a verdade, e sei muito mais que, para ele isso não era o mais importante naquele acontecimento…

A pergunta deste dialogo se faz caber:

“Discordar justifica a barbárie?”

Devaneios

setembro 24, 2011

Gravura do livro de Gérard Thibaud "Academie de l'Espée" ano 1630

Segundo a tradição da nossa escola, o piao chin lien (標金連), ou Padrão do Lotus Dourado, apesar de hoje tão presente e fundamental para a compreenção do Shen She Chuen, foi uma das últimas adições de mestre Hsü Yin Fong  para seu sistema. Não se sabe extamente desde quando o criador do estilo entrou em contato com tal símbolo, em todo caso, este já era conhecido e utilizado por seu irmão em kung fu, mestre Hu Wei Kwan, criador do estilo Hua Chuen (“Punhos floridos”).

Para Hsü Yin Fong esse símbolo carrega a promessa de nele estarem  sintetizadas todas as ações do sistema. Ou seja por ele passou ou passará qualquer movimento que trabalhe dentro da base do estilo.

Interessante notar, que é um padrão presente tanto em manuais modernos de combate com faca, (no filme “A grande arte” adaptado do livro homônimo de Rubem Fonseca, aparece uma cena em que o personagem é apresentado ao símbolo com uma rapida explicação sobre sua interpretação em cortes e perfurações. ) quanto em antigos tratados de esgrima européia, tais como o ” La Filosofía de Las Armas ” de Jeronimo de Caranza datando de 1583, onde o autor relaciona proporções corporais, com diversos cálculos de angulos de defesa e ataque, bem como de movimentação. Jeronimo de Carranza é tido como o criador do sistema espanhol de esgrima conhecido como “La destreza”. Alguns pontos desse método, chamam a atenção, tais como a identificação da linha central, delimitação da área de atuação, uso da estocada mesmo para executar um corte (a escola européia até então usava o corte direto, mais facil de ser evitado). Partindo para o devaneio, é possivel identificar portanto, Piao Zhon, Chin Tien Fang Fah e até elementos do Shi Pa Tu She.

Universalidade de conceitos, ou transferência tecnológica, dificil dizer. Mas fato é que esse tratado surgiu algumas decadas depois dos espanhois chegarem ao que chamamos hoje de Filipinas, e a discussão é bastante acirrada sobre quem ensinou quem, já que existem muitas similaridades nos conceitos do Kali filipino (arte marcial filipina) e do sistema espanhol “La destreza”.

Dado curioso, por volta do ano de 1574 os conquistadores espanhois, junto com tropas de nativos filipinos, expulsam o famoso e até então bem sucedido pirata chinês Lin Fong (林風) originário de Fujien, que com sua poderosa frota dominava todo mar do sul da china nesse periodo. Outro dado curioso é a forma do kris, o facão filipino, que tem a mesma forma da lança Mao do arsenal clássico chinês, aquela em forma de serpente. Que imbróglio tudo isso não?

“MAIOR QUE O UNIVERSO, É O VAZIO QUE O CONTÉM…”-Hu Chao Tien

agosto 25, 2011

Em Hong Kong, num pequeno apartamento/estudio de três cômodos na Hau Wong Road, em Kao Long, reside o senhor Pang Pang, um artista plástico de aproximadamente sessenta anos de idade. Eu estava filmando na mesma rua quando fui convidado a conhecê-lo, porém, foi uma visita curta em razão do horário e do trabalho que me esperava,  mas não por isso, deixou de ser muito marcante para mim.

Eu tomava uma xícara de chá, com o meu olhar fixo na parede da sala, não numa tela, mas na própria parede, onde uma pintura, num tema figurativo, de cores e os traços fortes, me prenderam a atenção de tal maneira que eu mal conseguia prosseguir a conversa com o artista e com o colega que nos apresentou. Dentro do meu limitado conhecimento sobre o assunto, fiquei um bom tempo tentando decifrar o significado daquela pintura.

Na minha segunda visita, eu estava cheio de argumentos e possibilidades, mas quando ele retornou com as xícaras de chá, deparou comigo atônito, agora contemplando uma parede pintada de branco. Tentei, pela falta de intimidade, não dizer nada sobre a pintura, mas a medida em que o tempo foi passando, resolvi abordar o assunto, e a conversa se desenrolou mais ou menos assim:

Eu – A pintura na parede, o senhor pintou por cima?

Sr. Pang – Não, raspei e depois pintei de branco. Do contrario, quando eu for pintar novamente, as nuances interferem no resultado das cores.

Jeff – Já vi pinturas incríveis nessa parede. Quando o senhor começa a nova?

Sr. Pang – Talvez, hoje a noite.

Eu – Aquela pintura, para o senhor, ela tinha um significado definido?

Sr. Pang – Um momento.

Eu – Ela era linda!

Sr. Pang – O momento, também.

Ele serviu o chá para nós, a conversa rumou para outros temas, mas ainda intrigado, logo que percebi uma brecha, retornei ao assunto “parede”.

Eu – O Senhor já tem idéia do tema que vai pintar dessa vez?

Sr. Pang – Outro momento.

Eu – E novamente vai?..

Jeff – O Maximo que eu vi uma pintura ficar nessa parede foi um mês, não?

Sr. Pang – As vezes mais, outras menos… Eu não determino um prazo.

Eu – O senhor não sente remorso quando está apagando a sua pintura?..

Sr. Pang – Quando eu cheguei aqui, a quinze anos atrás, eu pintei fachadas de cinemas, cartazes de promoção em lojas, e até portas de comércios para a minha sobrevivência. Hoje, vivo da minha arte, desenvolvendo projetos visuais para produtoras, temas para exposições, e vendendo alguns quadros.

Eu – Ah, o senhor vende os seus quadros?

Jeff – O senhor Pang tem uma grande quantidade de admiradores em Hong Kong. O Stanley Ho tem um painel no cassino em Macau.

Eu – Me desculpe a intromissão, mas esses momentos que o senhor retrata não são importantes?

Sr. Pang – Cada um deles.

Eu – Então, porque o senhor não os pinta em tela ao invés de parede, e vende-os? Não seria uma forma de eternizar esses momentos?

Sr. Pang – Se eu os pinto é porque já são eternos em algum lugar dentro de mim. Também, não o faço pelo remorso que sentiria por vender parte da minha vida em pedaços. Os quadros que eu vendo são do mundo, os que eu pinto nessa parede são meus.

Tirei a foto que encabeça esse post, de uma outra no escritório da Green light productions em Hong Kong. Jeff me disse que ela é de autoria do Sr.Pang.

“A ESSENCIAL SENSIBILIDADE”

julho 24, 2011

“Conhecemos mal o mundo e depois dizemos que ele nos decepciona.”

Rabindranath Tagore

Percebo, com satisfação, a busca de alguns alunos ao entendimento do sistema não apenas no aspecto técnico, mas também no teórico. Isso já vinha acontecendo com determinação por parte dos meus discípulos André de Toledo Sader (虎找海) e Luis Pelegrini (虎找山) e alguns alunos antigos, mas já se  faz notar essa sensibilidade em outros  alunos, e sobretudo, nos alunos mais novos.

Conhecer o que se pratica nesses dois aspectos, significa que a essência do sistema está sendo buscada, e com isso, jamais acontecerá a decepção, isso porque, abordando com essa profundidade você perceberá, não se um estilo de Kung fu é bom ou ruim, mas se ele atende a suas expectativas ou se o seu ciclo nele já não se findou.

Um aluno antigo, chamado Rafael (nós o chamávamos de “Neb”), depois de algum tempo de prática,  me procurou e disse:

Shi fu, tenho muito carinho por todos da escola, muito carinho e gratidão por você, mas nesse momento, eu me sinto completamente envolvido pela música e pelo instrumento que estou aprendendo a tocar…”

Então, ele me entregou o envelope de Hong pao e depois continuou:

“Assim, diante do respeito que sinto pelo sistema, pela família e pelo senhor, e diante do meu foco estar totalmente voltado para essa minha nova descoberta, estou pedindo o meu afastamento da escola, porém, não gostaria de perder o vínculo com você e meus colegas.”

Não apenas compreendi, como aceitei, e senti um profundo orgulho daquele rapaz. Entendi que, de alguma maneira, o Kung fu foi um caminho para essa nova descoberta. Também me marcou o respeito e consideração por parte dele, uma vez que ele poderia comodamente continuar a freqüentar os treinamentos, com o coração dividido, sem foco e sem a sinceridade que a arte merece, ou mesmo se afastar, comunicando a sua intenção somente a quem lhe interessasse, mas ao contrário, teve uma atitude digna.

Outro dia ouvi de um aluno, que ele entendia que haviam mestres que lidavam com a elite, outros que lidavam com os mais, digamos, simplórios, e também aqueles mestres que lidavam com o meio termo. Na hora, fiquei olhando para ele, pensando:

“E você, sabe em qual grupo destes alunos você se encaixaria?”.

Quando não se compreende a essência de uma arte, você se distancia da sensibilidade para perceber que a arte não se adapta a você, e sim você se adapta à arte. Desta forma, você a assimila em sua essência, a desenvolve na sua originalidade e por fim, se liberta. Ela se manifestará através de você, e à sua maneira. Para que isso ocorra, é necessário que todas as etapas do aprendizado sejam respeitadas, ou seja, a assimilação, o aprofundamento e por fim, a liberdade para a manifestação.

Não sei se o Rafael virou um grande violinista, afinal, a música pode, também,  ter servido como uma via para outras descobertas. Mas na verdade, isso não vem ao caso, pois o importante é a busca sincera, e ela sempre é bem vinda.

Aos meus discípulos, degustem o aprofundamento, aos alunos mais velhos, sensibilidade, e aos alunos novos, continuem receptivos…

Abraço a todos!

Deixando que seus sonhos se tornem realidade

junho 22, 2011

Na África durante os períodos de grande secas, uma tribo tem como costume utilizar a habilidade dos babuínos para encontrar água. Eles se aproximam de um bando, fazem um pequeno buraco no barranco, depois colocam algumas vagens de amendoins dentro dele, tudo isso observados pelos curiosos e já ouriçados primatas.

Quando os homens se afastam, o macho alfa ruma apressadamente em direção ao barranco, e imediatamente enfia a mão no buraco buscando o que o homem lá colocou. Ao pegar, com o punho fechado ele não consegue retirar a mão, e ele fica preso por ela,  a sua curiosidade tamanha em descobrir o que pegou o impede de abrir e largar, e assim livrar a mão e escapar.

Os homens que observam a distância retornam, escavam o buraco e capturam o babuíno, levando-o com eles de volta para aldeia, onde ele é mantido preso sem comer, e principalmente sem beber. Alguns dias depois, eles soltam o babuíno, e este parte em busca de saciar a sua sede, e a par da sua astúcia para encontrar água, os homens da tribo o seguem até encontrar as desconhecidas fontes em lugares remotos.

Essa história com o babuínos me veio enquanto eu observava o quadro acima, numa fusão das tradicionais artes do “recorte em papel” e “caligrafia”, onde lemos Hu yi ji xiang, cuja tradução seria “desejando que seus sonhos se realizem”. A minha observação me levou a atentar ao fato de que, muitas vezes, somos como os babuínos em relação aos nossos sonhos, dirigindo todas as nossas forças para mantermos na mão algo que julgamos importante, embora se quer saibamos o que ela é realmente.

Tantas vezes somos como os babuínos, e temos a mão presa com os nossos sonhos profissionais, artísticos, sentimentais, e pessoais, quando em buracos nos barrancos da vida fechamos ela com a expectativa de que aquilo por se revelar vai ser fundamental para nós. Enquanto isso, mantemos lá a nossa mão presa, sem conquistar, porém sem perder o algo “talvez” precioso que já temos nela.

Na própria arte do Kung fu, encontramos praticantes que não se dispõe verdadeiramente a abrir a mão e aprender, preferindo manter ela fechada com um conhecimento que ele entende já ter adquirido, e se abrir corre o risco de perder algo, mesmo que este algo venha a ser nada. Profissionais e artistas que preferem não se arriscar a abrir mão, pois não querem perder nada, mesmo que com essa posição ele nada realize.

Realizar os seus sonhos depende de inúmeros fatores, porém o sincero desejo de realizá-los cabe apenas a nós mesmos. Talvez seja a hora de abrirmos a mão, e caminhar em busca da fonte, e enfim saciarmos a nossa sede de realizar, aprender, conviver, viver…


“MEU PAI, O KUNG FU, E O MINCHI…”

maio 22, 2011

Eu tive o privilégio de ter como mestre o meu pai, o Shi kung  Hu Chao Tien (虎小田 師公), o que me propiciou umas das condições mais importantes para o desenvolvimento do meu Kung fu: A convivência. Esse convívio diário acabou por proporcionar-me situações de aprendizado muito peculiares, e hoje percebo na convivência com os meus alunos, o quanto a relação e convívio entre mestre e discípulo é necessária na compreensão da essência do ser humano e desta arte.

Dentre as muitas histórias do meu aprendizado nessa convivência, uma das mais marcantes para mim, foi com sete ou oito anos, quando tive a minha primeira explicação do que seria o “princípio técnico”. Ela não aconteceu em casa durante os treinamentos, e sim no restaurante Fok Lan Seng, após degustar um prato muito popular de Macau, preparado magistralmente pelo senhor Tak, o Minchi.

Satisfeito após degustar o meu prato preferido, eu beliscava os pequenos pedaços de batatas restantes na travessa, quando o meu pai me tomou um dos kuai tz (筷子= palitos usados como talher) e o posicionou em cima dela, dividindo-a em duas metades iguais. Então ele perguntou:

– “Lembra quando mais cedo eu falei de zhon li (中立) para você? Aí está ele, não no kuai tz, mas no invisível que ele cobre. Dividindo essa travessa ao meio, na linha que precede o sua metade ou a minha, ele determina o ponto dessa divisão pela sua existência, sem interferir.”

Percebendo a minha curiosidade, ele pegou o mesmo kuai tz e o posicionou na frente do seu nariz e continuou:

– “Isso é o piao zhon (標中).”

Então, ele indicou para que eu pegasse o que eu tinha na minha mão e fizesse o mesmo. Eu atendi e ele aproximou o seu indicador até o meu palito.

– “Se nada nos impede, eu posso tocar no seu, e você também pode fazer o mesmo, não é? Isso é liou shou zhon jin (溜手沖進).”

Em seguida ele pega a minha mão e a posiciona acima do prato, ao mesmo tempo em que aproxima a sua, e assim cruzamos os dois kuai tz.

– “Quando existe o impedimento para que eu o toque, ou você tenha a sua ação contida por mim, acontece o surgimento de piao shi (標十)

Pela minha pouca idade e a imaturidade técnica de então, pouca coisa eu realmente compreendi naquela demonstração, no entanto ela foi profundamente inquietante no sentido de estimular, aguçar, ou seja, criar curiosidade em compreender. O senhor Tak trás chá para o meu pai, os dois conversam por um tempo, e eu agora com o meu par de kuai tz tentava repetir o que acabara de ouvir sob o olhar discreto do meu pai.

Passaram-se os anos, eu já um adolescente, alcançara o nível para Muo jen zhuan (木人樁), e praticava o San tien shan (三天山) como se fosse morrer no dia seguinte. Num almoço com o meu pai e o meu tio Hu Tsu lun ((虎祖倫 師叔公), no Wong chi kei, o restaurante predileto deles, enquanto pediam os pratos, eu massageava orgulhosamente os hematomas distribuídos em meus braços, fruto da minha dedicação e esforço no treinamento com o “homem de madeira”. Ele, em meio a uma golada de seu chá, me disse:

Shou ()!

Diante da minha indisfarçável incompreensão, ele colocou a sua xícara de chá diante de mim, e continuou:

– “Você seria capaz de quebrar essa xícara com uma palma?”

Meu tio riu quando eu olhei para as mesas em volta, e depois para o proprietário, e em seguida, com o seu jeitão bonachão, comunicou ao proprietário, o senhor Wong:

– “Se meu sobrinho quebrar a sua xícara, eu pago!”

Embora a situação fosse estranha, por um momento eu olhei para a xícara pensando em destruí-la, mas havia as pessoas, a xícara de porcelana do Senhor Wong e, claro, a possibilidade de me cortar com os cacos. Foi quando ele puxou a xícara de volta, e falando pausadamente como sempre, finalizou:

– “Você pode saber que tem a capacidade de quebrá-la, o que ainda não sabe quais são as conseqüências disso. Por hora, em sua prática no Muo jen zhuan, entenda-o como se ele  fosse feito da mesma porcelana dessa xícara!”

No restaurante do senhor Wong eu ouvi meu pai falar sobre poesia, vi ele tocando Hu qin (胡琴), meu tio contando “causos”, falando de ópera e, claro, muitas conversas sobre o estilo e a arte. Mais tarde, em uma visita ao Wong chi kei, eu decidi salientar para o meu pai o fato de que muitas coisas importantes sobre a arte, eu aprendi com ele naquele lugar, e que fora curioso para mim quando eu percebi isso. Disse-me ele depois de uma pausa de reflexão:

– “O Kung fu está todo o tempo e em todos os lugares, e pode se manifestar incontáveis maneiras… Manifestá-lo apenas corporalmente, e limitá-lo a tempo ou espaços é um enorme desperdício. Quando se percebe isso, ele amadurece com você e o acompanhará para sempre, caso contrário, ele apenas envelhece e morrerá antes de você.”

No meu último encontro com os alunos em São Paulo, falamos sobre muitos assuntos, e em alguns momentos lembrei-me do chiado das frituras do Minchi do Fok Lan Seng, e do aroma do Yum chá (飲茶) no Wong chi kei. Repeti isso com os meus dois alunos do Rio de Janeiro, e percebo o quanto essa convivência é importante.

Não tem Minchi, mas tem Ma pou tou fu, e está tudo bem…

“O relaxar”

abril 22, 2011

FANG SONG

放鬆

Ainda no tema Shou (), po () e li (), depois as três abordagens, shou fah (手法), kuo fah (口法) e Ming hsin (明心), vamos falar agora da atitude interior inerente a cada um dos estágios. Quando essas atitudes são compreendidas elas dão suporte a ação de abordagem, e quando ela acontece alcançamos o objetivo, e assim completamos o San kuai tz (三筷子), colocando o terceiro palito no símbolo ao qual Hsü Yin Fong empregava para explanar o seu sistema.

Fang song (放鬆), o “relaxar”, está na base, e por isso, segue os dois próximos tópicos. Quando se estabelece nesse primeiro estágio, ele inicia o processo real de receptividade, nos libertando das camadas que envolvem as inseguranças e os medos quanto a errar, a se expor, e das limitações propiciadas pelas expectativas que nós mesmos estabelecemos ou imputamos a terceiros. Não há o que justificar, não existe do que se defender, mas sim a transmissão e a prática

Chi jue (知覺), o “comprender”. Quando separados esses ideogramas podem ser interpretados como compreender o conhecimento, e se estabelece no segundo estágio quando “relaxados”, juntamos o que desenvolvemos corporalmente aos esclarecimentos que recebemos oralmente, e com a interligação do físico ao intelecto iniciamos a caminhada para o entendimento real da arte.

Chi kuo (智擴), a “percepção”. Esses ideogramas também podem ser interpretados como a expansão intelectual, e se referem ao desenvolvimento da capacidade de dominar e empregar os princípios do sistema, não apenas no âmbito marcial, mas também na sua vida como um todo. Relaxado você consegue perceber os objetivos e as necessidades, e assim empregar os procedimentos como adequar, interceptar, recepcionar, a continuidade, as inversões, as reaquisições e até o abandono.

Interessante recordarmos que o primeiro (e único) discípulo de Hsü Yin Fong foi Hu Hsue Chen, este um profundo conhecedor de outro estilo, o Hua chuen (花拳) Kung fu. Conta-se que os dois primeiros ensinamentos de seu Shi fu quando ele iniciou a pratica do Shen She chuen kung fu foram:

 嘴傳拳收

Tsuei chuan chuen shou

(A boca transmite e o corpo recebe!)

 放鬆

Fang song

(Relaxe!..)


“A beleza em forma e espírito”

março 23, 2011

HSIN  SHEN CHIAN MEI

形神兼美

Para abordarmos os princípios de shou (), po () e li (), temos que primeiramente entender como fazê-lo, e assim usufruirmos verdadeiramente deles,  aplicando ao nosso crescimento no Kung fu e no nosso dia a dia.

São três as maneiras de abordagem aos princípios, sendo a primeira Shou fah (手法), a segunda Kou fah (口法), e por último Ming hsin (明心). Dentro dessas três abordagens existem duas vias, a do discípulo para com a arte, que envolve a sua trajetória de aprendizado, e uma outra, a do Mestre para com o discípulo, onde o primeiro se mantém atento ao “que” e “quando” avançar o aprendizado do segundo.

Shou fah (手法), o “método das mãos”, se refere ao aspecto corporal do seu aprendizado, onde o discípulo é apresentado aos exercícios, às bases e às evoluções físicas do estilo. A visão e a atenção são exigidas, e cabe uma frase muito comum entre os Mestres tradicionais:

嘴傳拳收

Tsuei chuan chuen shou

(A boca transmite e o corpo recebe!)

Kou fah (口法), o “método oral”, se refere ao aspecto intelectual do seu aprendizado, quando ao discípulo são transmitidos os princípios, conceitos e teorias do sistema. A audição e a percepção são agora mais exigidas, uma vez que é no Kou fah que acontecem as abordagens que esclarecerão importantes tópicos e referências que propiciarão o esmiuçar e o  aprofundar no estilo ao qual versa. A compreensão deste estágio leva o discípulo ao princípio filosófico do Tien jen ho Yi (天人合一), onde a harmonia entre o céu e o homem (teoria e prática) levam à assimilação (精-Jing= essência), à percepção (氣-Chi= energia interna) e à adequação (神-Shen= espírito).

Ming hsin (明心), o “coração límpido”, é alcançado por aqueles que conseguem usufruir dos significados ao invés de se dedicarem a explicá-los. Estes se encontram em harmonia com as transformações da natureza (causa e efeito), e a prática e manifestação da sua arte é agradável, fluida e equilibrada, uma vez que eles vislumbraram não ser necessário “estar sendo” o melhor esclarecido e consciente em todos os tópicos pertinentes ao seu Kung fu, eles vivenciam isso.

Neste nível atingimos o princípio do Hsin shen chian mei (形神兼美), a “beleza em forma e espírito”, uma antiga filosofia  estética chinesa que originou muitas artes tradicionais. Harmonia, sensibilidade e zelo devem ser companheiros nessa infinita jornada que nunca estaremos preparados para trilhar, e sim num constante processo de evolução ao fazê-lo.

É quando compreendemos que atenção para manter é infinitamente melhor do que tensão para não perder, e quem explica o tempo todo, tem menos tempo para a prática.

Foi assim no Wu lin (武林), é assim no Kung fu (功夫), e será assim no Shen She chuen (神蛇拳).

fevereiro 21, 2011

CARTA A MINHA AMIGA ANDRÉA

De uma conversa sobre aprendizado que tivemos há algum tempo, acabei me lembrando de uma outra, essa com o meu pai, na qual eu o indagava sobre a importância da percepção quando aprendemos e estudamos para o resultado final: a eficiência da técnica.

Lembro dele olhando para mim por algum tempo, depois contendo um sorriso que certamente me incomodaria, comentou:

“Sim, e mais do que isso, compreender a diferença de ser e estar sendo perceptivo… Quando você caminha, acontece o estabelecer do equilíbrio, a transição dele, a alternância de um pé na frente do outro e a consequente locomoção, mas o fato de você não perceber isso, não invalida o processo nem a existência de cada um deles… Você simplesmente abandonou o estar para ser.”

Fiquei pensando sobre isso e de como a palavra “abandonar” pode ter um peso tão significativo diante da cultura de que o aprendizado é acumulativo.

Essa leitura dele, vem de um princípio na cultura tradicional chinesa quanto à abordagem de um conhecimento que se divide em três estágios, sendo:

守shou – Que pode ser traduzido como guardar ou observar algo, em sua estrutura, rituais ou costumes.

破 po – Que significa quebrar ou dividir em partes, aqui entendido como: analisar .

離 li – Cujo significado é ausentar-se, separar-se, e aqui empregado como abandonar.

No primeiro está a aceitação, o receber e o absorver o conhecimento em algo que você ainda não conhece.

No segundo o estudo, a análise e o aprofundamento do conhecimento em absorção.

No terceiro está o abandono, mas não no sentido de jogar fora, e sim de permitir que o conhecimento flua na sua existência e na natural expressão de quem o adquiriu.

Quando você está sendo perceptivo, o processo passa a ser mais importante do que o objetivo e você se prende eternamente na necessidade de compreender o fragmentado, e por isso jamais conseguirá usufruir do inteiro. Ser perceptivo é vivenciar cada um dos estágios para que não seja escravo do último.

No que eu pensei que era o final da conversa, reclamei da minha sede, procurei um copo, busquei a água, bebi prazerosamente e, por fim, manifestei a minha satisfação… E ele finalizou:

“Acabou de acontecer o processo. Você sabe a função do copo, a finalidade da água e está usufruindo do processo. Já imaginou se você empregasse a sua percepção de maneira equivocada? Ainda estaria com sede!”

Beijo Dedéia!

Dani, lembro-me dessa conversa. A carta é maravilhosa! Tomei a liberdade de abrir os tópicos do texto para absorvê-lo em profundidade (a segunda fase do conhecimento citada na carta: dividir para analisar).

1) Percepção para eficácia da técnica;

2) Diferença entre Ser e Estar sendo perceptivo;

3) Andar, por exemplo, abandona o Estar sendo perceptivo para Ser perceptivo;

4) Ser perceptivo é um estado em que não se percebe o processo, ainda que ele esteja presente;

5) Abandonar o processo vai contra a ideia atual (e a cobrança) de acumular processos;

6) O conhecimento na tradicional cultura chinesa:

A – Observar o objeto de conhecimento – absorvê-lo;

B – Dividir o objeto de conhecimento para analisar suas partes individualmente – aprofundamento da absorção;

C – Abandonar o objeto de conhecimento – o objeto flui independente do sujeito, assim como é representado pela expressão individual do próprio.

7) Estar sendo perceptivo é permanecer em apenas uma das etapas do conhecimento. Confunde-se a divisão do entendimento do processo com estágios permanentes;

8) Andar é um processo que existe sem a necessidade de sua compreensão.

Ser perceptivo é “andar” o processo.

Agora é abandonar essa análise para que ela opere em minha manifestação individual. Lembrei-me de Maurice Blanchot, para quem o escritor não deve ter mais tempo, mas menos mundo em sua entrega à escrita. Ou seja, deixar os processos entregues a uma percepção que não depende do pensamento para ser colocada em marcha.

Obrigada pela carta!

Andréa del Fuego

 

 

(Andréa é escritora e estudante de Filosofia na Universidade de São Paulo.)